Ivan passou por um mendigo cabisbaixo encostado na mureta do chafariz em construção e perguntou:
- Opa, firmeza?
O mendigo olhou para ele como se visse uma parede em branco, sem qualquer emoção. Não respondeu.
- Então, é cedo ou a cidade é bem paradona assim mesmo?
O mendigo sorriu com a boca meio torta (ou pelo menos pareceu, pois estava parte dela embaixo de uma barba suja e desgrenhada) e disse:
- Esse lugar não tem muita vida, se é que me entende.
- Então, estou vendendo uns cigarros e vejo que o senhor tem aí 10 reais. Te faço esse pacote aqui por 10, o que acha? - Ivan queria ver o quão maleáveis eram os citadinos.
O mendigo coçou a barba e pensou que fumar daria um bom alívio naquele que seria mais um dia de cão.
- Tá, tá! Me vê o pacote aí. - Disse o mesmo apontando para o chapéu.
Ivan se abaixou, pegou o dinheiro e deixou o pacote. O mendigo desembalou um maço, retirou um cigarro e perguntou: - Tem isqueiro?
Ivan acenou com a cabeça positivamente, pegou o isqueiro no bolso e deu ao mendigo.
- Cortesia. - finalizou.
O mendigo agradeceu com olhar meio insano.
- Você é gente boa, é melhor ir embora antes de arranjar problemas. - Disse ele entre uma tragada e outra - Conselho de quem conhece a vizinhança.
Ivan franziu o cenho curioso.
- Como assim? - Perguntou.
- Acredite em mim. Você não vai querer saber. Se quiser dar uma olhada, fique a vontade, mas não fique muito tempo e evite ficar de prosa.
Ivan achou aquilo estranho. Havia achado o local perfeito para se instalar e recomeçar o império do crime de sua família, mas um estranho mendigo no meio de uma praça semi-deserta o havia recomendado o contrário. Ivan já havia trocado tiros com milicianos, traficantes e policiais. O que um bando de caipiras que falam de bombacha e que falam "tchê" poderiam fazer de mal? nem na rua punham as caras!
- Obrigado pelo conselho... - Ivan falaria algo mais mas o mendigo, com cortesia zero o interrompeu.
- Cala a boca. Evite ficar zanzando nas bordas da cidade. Coisas ruins acontecem por lá e, se possível, vá embora antes de anoitecer.
Ok, o cara me mandou calar a boca - pensou Ivan - agora esse cara está me aborrecendo.
- O que poderia acontecer de ruim?
O mendigo olhou para Ivan com olhar ensandecido após uma tragada e começou a rir com tom de voz fraco, mas sem cessar.
Ivan se aborreceu mais ainda, mas preferiu sair e tentar um diálogo com alguém menos louco. Já estava se sentindo patético de perder tempo com um mendigo. Só Deus sabe que tóxicos essa cara já deve ter usado, pensou. Ivan acenou ironicamente, como quem dava adeus e foi saindo em direção a um banco atrás em diagonal. O mendigo pareceu achar ainda mais graça do gesto.
Ivan fez isso pois viu uma jovem magra mas de belo rosto sentada num banco mais atrás olhando para a praça distraída, e quando se aproximou quase não percebeu o olhar de pânico que ela fez.
- Er... Olá, jovem. Está tudo bem?
A moça engoliu o soluço que estava prestes a soltar e acenou positivamente com a cabeça.
- Você sabe onde tem um mercado aqui? Eu não sou daqui estou de passagem vendendo algumas quinquilharias. - Disse ele ainda desconfiado.
A moça, pálida, ficou uns dois segundos olhando para ele inerte antes de responder.
- A.. Aqui atrás tem um. - E apontou o polegar direito para a porta do estabelecimento.
Ivan achou o comportamento bizarro. Essa gauchada roceira, gente esquisita, pensou ele.
A moça pareceu desinchar e corar de novo, como quem soltasse um ar aliviado.
- Tem certeza que está tudo bem? - Ivan tornou a perguntar.
- Sim, sim. Peço desculpas. Achei que fosse outra pessoa. - Disse a moça.
- Qual seu nome?
- Jéssica - respondeu ela.
- Prazer, Ivan - disse ele estendendo a mão como quem esperasse um cumprimento igual - Você é daqui?
Jéssica estendeu a mão e quase se arrependeu com o aperto de mão forte a ponto de estalar os ossos que Ivan deu.
- Não, não. Estou só de passagem também. - Respondeu.
- Fuma?
- Já fumei quando mais jovem. Hoje não, preciso do meu corpo saudável para trabalhar... Mas nada contra - Disse ela.
Ivan achou a justificativa estranha. Pensou que a moça era prostituta, mas não falou nada. Apenas remoeu a informação e pensou: Ótimo, Ivan. Com o mendigo e a moça você já pode montar um camelódromo e um puteiro na cidade.
- Bem, eu vou entrando. Obrigado pela atenção. - Disse encaminhando-se para a porta do mercado. Se não fosse pela indicação de Jéssica, Ivan não teria notado tamanha a degradação da tintura do letreiro na parede. Entrou, viu o mesmo cenário que Jéssica. Um caixa que parecia estar dormindo de olhos abertos e um arrumador de prateleiras tão sem vida quanto. Ao se aproximar percebeu que ambos tinham um tom de pele acinzentados, chegou a levantar os óculos para confirmar e ao confirmar, começou a temer que o mendigo tivesse razão. Porém, achando-se ridículo, afastou os maus pensamentos com uma hipótese mais prosaica.
Esse povo não deve tomar sol, carência de Vitamina D eu acho. - pensou.
- Olá, em que posso servi-lo, senhor? - Perguntou o caixa.
- Sou Ivan, vendo cigarros e outros produtos. Vocês estão comprando algo? Tenho cigarros e aparelhos de IPTV.
O caixa pegou uns papéis debaixo do caixa registrador antigo (um modelo que devia datar da década de 70) e olhou. Pareceu fazer contas e respondeu com voz lenta e monótona:
- Sim, senhor. Compramos sim.
Ivan deu um preço cinco vezes maior que o que deu ao mendigo na esperança do vai que cola e, sem pensar duas vezes, o caixa retirou os 50 reais e pagou-o. Ivan deixou o pacote de cigarros sobre o balcão, pegou o dinheiro, conferiu para ver se era verdadeiro e, confirmando, pôs na carteira.
- Obrigado. - disse Ivan ainda incrédulo - Vocês sabem quem compra eletrodomésticos na cidade? - Complementou.
O caixa continuou olhando para Ivan sem nada responder.
- Sabe? - Insistiu.
...
Silêncio apenas.
- Olá, em que posso servi-lo, senhor? - Perguntou o caixa com voz idêntica a que falou da primeira vez.
Ivan já estava se sentindo estranho na cidade e o sujeito ficar encarando-o sem responder e depois repetir tal qual um gravador a fórmula mais que decorada de "em que posso servi-lo" o fazia se sentir mais estranho ainda. Ivan, por fim, acenou com a cabeça e se despediu.
- Err... Obrigado. - falou saindo.
- Volte sempre - disse o caixa com olhar inerte.
Ivan ao voltar seus olhos novamente para a praça viu que a moça já se havia levantado do banco e estava conversando com duas outras pessoas do outro lado da praça. O mendigo por sua vez olhava para ele rindo as gargalhadas e fumando animadamente o cigarro.
Ivan teve um mau presságio.