sexta-feira, 2 de julho de 2021

[Contos] O mistério do "Vale do Nada" - Parte 2

Ivan estava tendo um dia difícil. Mas a expectativa até que era boa, pois, afinal, se tudo desse errado, ainda tinha seu sobrenome que era muito importante. Andrade, não que isso seja uma vantagem real mas, até que as pessoas tenham a big picture, o nome Andrade no mundo das ilegalidades ainda soa forte. Ivan tinha nada mais na menos que um parentesco bem distante (mas não negligenciável) com o famoso bicheiro carioca Castor de Andrade.

Até que as pessoas percebessem que Ivan tinha mais lábia e bravata do que influência, seu sobrenome ainda era imponente. Mas isso não muda o fato de que Ivan estava tendo um mau dia. Ivan era parte de um esquema de venda de produtos contrabandeados no Rio de Janeiro. Acostumado com o calor, Ivan jamais pensou que, poucos dias após os quiproquós de hoje, estaria preocupado em lidar com terrível inverno gaúcho.

O dia começou até que bem, o chefe do esquema confirmou com ele e mais dois colegas de que um carregamento de cigarros do Paraguai e aparelhos de IPTV estavam para chegar e que a recepção seria feita a noite na zona portuária do Rio. Era, claro, algo muito arriscado, afinal de contas, contrabando é feito "na moita" e não em contêineres nas docas. Mas o fato é que o chefe do esquema havia assegurado que o esquema estava todo certo e fechado com um operador de grua, com o dono do cargueiro e com funcionários do porto para fazer os produtos que chegarem se passarem por outros produtos legais. Claro, tudo mediante a relatórios fraudados, notas frias e algum suborno.

Ivan, "Zóio de Gato" e Ronicley foram destacados para supervisionar e fazer a recepção das mercadorias naquela madrugada. Entretanto, faltando poucos minutos para iniciarem-se as operações, Ronicley desaparece, deixando Ivan e Zóio de Gato na mão. Era suspeito, claro! Ronicley nunca sumia em dia de serviço, mas não eram raros os dias em que seu celular só dava ocupado porque ele estava ocupado bebendo num churrasco ou em algum puteiro da baixada. Aquele desfalque deixou os dois protagonistas deste conto furiosos, pois a carga de trabalho de cada um seria aumentada para compensar a falta de uma pessoa.

Ao chegarem ao local da transação, Zóio de Gato e Ivan já estavam bastante aborrecidos e a sequência dos acontecimentos tenderia a piorar a situação. Zóio de Gato, que estava sem carteira e tinha batido o carro teve de ir ao porto no carro de Ivan, um monza velho de cor vinho, apelidado de "tubarão" devido ao seu formato. Ambos desceram do veículo e foram conversar com o contato indicado. Após alguns minutos de acalorada negociação, o contato acena para alguns funcionários que os guiam até o contêiner. O operador de grua ergue o enorme caixote de ferro e o deixa posto num logradouro mais acessível. Os funcionários abrem as portas e começam a carregar  os produtos para um caminhão que o chefe do esquema havia alugado alguns dias antes, e que Ronicley havia deixado 24 horas no pátio do estacionamento anexo ao porto.

A ideia era simples: Ronicley dirigiria o caminhão e Ivan e Zóio de Gato seguiriam de carro para fazer a escolta. Sem Ronicley na área, Zóio de Gato teria de dirigir o caminhão. A entrega da carga estava indo bem até quase no seu final, que é quando as coisas começam a ficar estranhas.

Sirenes. Luzes. Helicópteros.

A polícia baixou no pedaço e o pipoco comeu para todo lado. Ivan sacou seu 38 e deu alguns disparos enquanto corria em direção ao carro. No desespero, Zóio de Gato deixou cair algumas caixas de cigarro paraguaio. Ivan pegou os pacotes e correu em direção ao seu carro. Antes de entrar deu mais dois disparos. Jogou os pacotes no banco de trás junto com a arma e saiu correndo. Zóio de Gato entrou no caminhão, tentou dar partida uma, duas, três vezes, em vão. O que ambos desconheciam é que Ronicley era um x-9; um ex-presidiário em condicional que estava por dentro do esquema para dar informações para a polícia, que esperou até ter um grande carregamento para agir. Ronicley antes de chegar ao posto trocou de caminhão no meio do caminho por um de mesma marca da polícia. O caminhão da polícia tinha um sistema elétrico de partida via satélite que poderia desativar o motor e impedir a partida remotamente.

Sem meios de fugir, Zóio de Gato acabou preso junto com todos os funcionários do porto envolvidos no esquema de corrupção. Ivan conseguiu escapar. Embora não tivesse conhecimento dos detalhes da missão policial acima mencionados, tinha vivência e experiência suficientes para saber que uma operação policial daquele tamanho não foi feita para prender só peixes pequenos como ele. E que o esquema todo estava desmontado. Definitivamente, aquele era um dia ruim!

Após virar várias quadras despistando a polícia, Ivan consegue achar uma brecha no bloqueio e escapar. Ele sabia que não poderia ficar no Rio e que se não quisesse ser preso teria que ir para bem longe dali. Parou num posto de gasolina a alguns quilômetros dali para reabastecer. Abaixou os óculos escuros e colocou um chapéu panamá para evitar ser reconhecido. Pagou o atendente do posto e caiu na estrada por horas.

Paranóico, olhava no retrovisor de 30 em 30 minutos para se assegurar de que não estava sendo seguido. Durante umas três horas quase chorou achando que sua vida estava acabada, até se dar conta de que aquilo, talvez, fosse uma oportunidade. Sim! É! Uma oportunidade de fazer o nome de sua família respeitado outra vez! Sem ser subalterno de ninguém! Mas aquilo não poderia ser no Rio... Do nada, o medo deu lugar a planos e mais planos... Quando completaram-se quatro horas de viagem, já quase na fronteira com São Paulo, Ivan tinha bolado o esquema perfeito de contrabando.

1- Ir para uma pequena cidade - Nesses locais o policiamento é menor e há menor atenção das autoridades.

2- Teria de ser uma cidade fronteiriça para o custo das operações de contrabando não serem altos. O ideal seria algum lugarejo no Mato Grosso do Sul ou no Rio Grande do Sul, onde o acesso ao Paraguai seria fácil. Fosse por acesso direto ou por meio do Uruguai pelo Rio da Prata.

Ivan seguiu dirigindo sem dormir. Estava exausto, mas animado. Havia conseguido fugir da polícia. Ao parar num restaurante de beira de estrada para comer, aproveitou a ocasião para olhar num mapa que estava pendurado na parede interna do restaurante. Olhou no Mato Grosso do Sul. Achou várias cidades promissoras e, quando estava prestes a se decidir, se deu conta de que ir para lá seria muito óbvio. Seria menos custoso, é claro, mas óbvio demais. Se ele fosse policial e estivesse procurando um contrabandista, obviamente, procuraria lá.

O Paraná também teria o mesmo problema, então optou por uma cidadezinha gaúcha, uma tal de Crescente. Lugar que era diminuto no mapa e que nunca tinha ouvido falar. Ficava próximo da fronteira com o Uruguai, mas não o bastante para chamar a atenção. Pagou a conta do almoço e caiu novamente na estrada. Dormiu em alguns acostamentos e passado alguns dias já estava chegando ao seu destino. Após deixar a rodovia e tomar uma estrada vicinal asfaltada, Ivan ainda dirigiu cerca de 40 minutos até avistar na subida de uma colina coberta por névoa uma placa com os dizeres: Bem-vindo a Crescente-RS; fundada em 1950; 800 habitantes.

Ivan entrou na cidade e, além do clima frio estranhou o pequeno movimento na cidade. Virou duas curvas a direita e chegou a uma grande praça, onde o único movimento era uma moça sentada num banco e um mendigo próximo ao que parecia ser um grande chafariz. Antes de descer, deu uma olhada no retrovisor por segurança, encheu o tambor do seu revólver calibre 38 e pôs na cintura. Ajeitou a camisa para cobri-lo, respirou fundo e desceu sorridente para o pior erro da sua vida.



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