Jéssica desceu do carro que deixara estacionado próximo a um ponto de ônibus na entrada da cidade. Como a cidade era pequena, pensou: pode ser uma boa ideia poupar gasolina e andar a pé na cidade, já que ela me parece bem pequena. Jéssica então, decidiu procurar uma hospedaria ou hotel. Em seus anos na vida noturna, estava acostumada a dormir nos locais moralmente mais inóspitos, de boates a motéis, então, um hotel de cidadezinha pequena não seria problema.
A medida em que se aproximava do centro da cidade (o que não demorou quase nada), sentiu fome. Quando atravessava a estranha praça central, parou e refletiu um pouco suas prioridades: não faria nenhum mal comer antes de me hospedar em algum lugar. Jéssica virou sua cabeça, o que fez escorrer pelos seus ombros sua cabeleira castanha. De imediato viu um supermercado, numa construção que mais parecia uma casa de colonos alemães mal pintada, onde o letreiro do mercado, pintado com tinta azul, agora estava desbotado e descascando. Abriu sua caretira, revelando sua identidade e os cartões de banco, e verificou quanto dinheiro ainda tinha. Contou as notas e falando consigo mesma em voz baixa disse:
- 470 reais... Nada mal - pensou.
Guardou a carteira no bolso traseiro do minúsculo short jeans que vestia, revelando suas pernas magras mas bem torneadas pelos anos de dança, onde na coxa direita, havia um anel tribal tatuado ao redor dela. Apesar de o dia estar nublado e frio, temia que alguém a reconhecesse dado os eventos dos últimos dias, por isso baixou seus óculos escuros, antes sobre a cabeça, agora no lugar correto. O óculos cintilava e dava um ar imponente a nossa dançarina, combinando bem com um piercing argola no nariz e um pequeno perfurando a bochecha esquerda.
Caminhou confiante em direção ao mercado (ou pelo menos tentou demonstrar isso, embora não fosse verdade) e, ao entrar se surpreendeu com quão pouco movimentado o mercado era. Havia apenas um caixa e um rapaz organizando umas poucas prateleiras. Nenhum comprador. Nenhum. Foi então que lhe ocorreu que no lado externo também não havia visto nenhum pedestre pela cidade.
Era um dia frio - pensou - as pessoas devem estar em casa com cobertores pesados, meias grossas e tomando chimarrão. Isso lhe deu um certo otimismo, muito pouco provavelmente a reconheceriam e, com tão poucos cidadãos nas ruas, o risco ainda seria mais diminuto. Começou a caminhar por entre as prateleiras a procura de algum salgadinho ou guloseima. Embora Jéssica fosse magra, gostava de besteiras que poderiam lhe render "algumas boas" estrias ou celulites que, se não fosse sua boa rotina de treino, já existiriam a essa altura.
Antes porém, que localizasse as guloseimas por si mesma um atendente a abordou.
- No que posso ajudá-la senhora? - Disse ele com voz monótona e lenta.
Senhora? - Jéssica pensou com bom humor - Ou eu pareço velha ou esse rapaz é um gentleman. - Concluiu.
Como dançarina de pole dance, uma dança sensual que pode eventualmente envolver topless, Jéssica estava acostumada a ser confundida e tratada como prostituta pelos homens, portanto, "senhora" lhe soava pitoresco. Coisas do interior - pensou.
- Ah sim, quero de um salgadinho, alguma coisa barata. - Disse ela.
O rapaz, com olhar morto e sem vida respondeu da forma mais seca e esquisita possível:
- Siga-me.
Jéssica ainda estava tão encafifada com o "senhora" e com sua preocupação em ser reconhecida por alguém, que nem notou as feições semi-mórbidas do rapaz. Após apontar o local das guloseimas, o rapaz voltou ao seu afazer monótono de organizar prateleiras, tão monótono quanto seu olhar desinteressado ou sua fala sem vida. Jéssica sacou um pacote de fandangos, foi até o caixa, pagou sem prestar muita atenção a pessoa que lhe atendera, tão estranho ou sem vida quanto o outro atendente e saiu.
Caminhou concentrada olhando para o pacote que estava abrindo e se dirigiu a um banco de praça que estava próximo ao mercado. Foi quando viu a primeira viv'alma da cidade. Um mendigo que se sentara no que parecia ser um chafariz inacabado ou seco. Ele estava com roupas esfarrapadas como qualquer mendigo, cabelos grisalhos desgrenhados como de qualquer mendigo de meia idade e um pequeno chapéu virado de boca para cima no chão, como se esperaria de qualquer mendigo. Jéssica que conhecia bem a sensação de ser considerada alguém a margem da sociedade se compadeceu, deu-lhe uma nota de 10 reais.
Ouviu um obrigado com voz trêmula, ao que ela respondeu com um sorriso amigável. Retornou ao banco e sentou degustando o salgadinho. Após alguns minutos perdida em pensamentos, finalmente relaxou um pouco, e pôs-se a observar a praça. Uma praça esquisita - pensou.
A praça era apenas uma enorme calçada quadrada, sem gramado e com alguns poucos bancos espalhados nas extremidades, próximos aos estabelecimentos comerciais adjacentes. Tinha no seu centro um enorme chafariz inacabado. A borda dele - que lhe servia também de paredes - devia ter um metro e dez centímetros de altura, mas o seu interior não estava preenchido por concreto, era apenas terra batida com um punhado de mato, num formato côncavo, onde o meio era mais profundo que suas extremidades, quase como se uma coisa pesada tivesse caído ali e afundado a terra no meio. Havia ainda um coreto branco de madeira vazio no meio da praça. Foi quando percebeu que nunca tinha visto um coreto fora dos filmes ou das novelas de época - sentiu um desejo de ir até ele, mas resistiu e preferiu ficar comendo o salgado. Nesse momento, Jéssica viu o que parecia ser o segundo transeunte da cidade se aproximando, na verdade vinha pela rua na frente da praça um carro velho, um Chevrolet Monza vinho, popularmente conhecido como "Monza Tubarão". O seu dono estacionou próximo a praça, demorou um pouco para sair, mas desceu do carro. Pareceu ajeitar algo na cintura e caminhou em direção ao centro da praça, como quem se dirigisse para falar com o mendigo.
Sua figura era estranha, usava uma camisa de flanela aberta no peito, revelando um crucifixo de prata e os cabelos no tórax, parecia friorento. Seu chapéu era o tipo que se esperava de um malandro e usava um ray-ban tão falso quanto o que ela mesma estava usando. Se aproximou do mendigo e pareceu ter lhe vendido alguma coisa que o mendicante comprou com o dinheiro que ela havia dado. Conversou algo com o mendigo e na sequência o homem voltou seu rosto para ela, caminhando na sua direção.
Jéssica gelou. - Será que é alguém enviado por Gustavo? - pensou - Não acredito que ele me achou! - Jéssica só pensou que tomaria outra surra, agora numa cidade onde não conhecia ninguém e onde não haveria ninguém para lhe ajudar. Apertou a mão contra o bolso esquerdo do short, onde havia colocado um canivete que sempre carregava para auto-defesa.
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