quinta-feira, 1 de julho de 2021

[Contos] O mistério do "Vale do Nada" - Parte 1


Aquela manhã era "quase" como uma manhã como muitas outras na vida de Jéssica. Uma manhã cansada do trabalho da noite passada, afinal dançar em um pole é uma atividade extremamente extenuante que exige um esforço físico digno de uma ginasta, além de várias apresentações de músculos e tendões fortes e elásticos por várias horas.

Mas eu disse "quase". Aquela manhã era uma manhã diferente para nossa dançarina em questão. Como não poderia deixar de ser na vida de alguém que se aventura em ser dançarina em boates, as razões que a levaram a seguir esse caminho na vida não foram recentes e possuem um longo histórico de erros e descaminhos. Jéssica Levine nasceu em uma família de classe média, e como consequência disso tinha tudo para dar certo na vida, se não por por um "exceto". Exceto que foi ela quem descobriu o adultério do pai com a empregada doméstica de sua família ainda aos sete anos. E foi da pior forma que poderia ser, após presenciar o coito entre o seu progenitor e a assistente doméstica. Tudo se passou numa noite em que a mãe tinha viajado a trabalho e o pai ficara sozinho em casa. Jéssica, que dormia cedo como toda criança deve dormir, teve um pesadelo naquela noite. E como é comum em crianças, e mais especialmente em meninas, o medo provocado por um pesadelo leva imediatamente a busca desesperada por socorro e proteção, no caso de nossa criança, os confortáveis braços e cama de casal dos pais. Aquela noite mudaria a vida da pequena Jéssica para sempre, pois foi seu primeiro e desafortunado primeiro contato com o sexo. Morando numa casa grande, seu pai não ouviu seu choro e seus grunhidos, estava "distraído" com "outras coisas" se é que você me entende. 

A pequena Jéssica caminhando meio tonta e amedrontada pelos corredores que ligam o quarto dela ao dos pais, não percebeu que haviam vestes caídas pelo chão, vestes que não eram as de sua mãe. Seu bichinho de pelúcia, um simpático jabuti a desequilibrava um pouco devido ao peso, pois apesar de já ter uma idade considerável para uma criança, um fato que sempre acompanhou Jéssica na vida é a sua magreza visível. Aproximando-se da porta com passos macios, abriu-a lentamente, sem fazer barulho e pode testemunhar seu pai e a empregada executando a traição. Jéssica ficou mesmerizada por alguns segundos, talvez um minuto. Em seguida retornou ao quarto sem ter ainda plena consciência do que havia visto. Mas aquilo lhe havia tocado profundamente de alguma forma, a ponto de fazer-lhe esquecer do medo, embora não soubesse como ou porque.

Passaram-se ainda alguns anos antes que Jéssica tivesse a consciência do que vira e das implicações daquilo, e foi com 11 anos, já na puberdade que Jéssica entendeu o seu chamado de Afrodite, e tudo ocorreu na sala de aula de uma das escolas de ensino fundamental de Porto Alegre, durante uma aula sobre o sistema reprodutivo. Tal chamado foi o mesmo que nascera em si no dia daquele infausto acontecimento de quatro anos antes. Quando completou 12 anos, Jéssica foi surpreendida pela separação dos pais. Sim, foi surpreendida, pois nunca vira os pais brigarem nem discutirem. Naquela semana de seu aniversário, achou-os um pouco chateados e também muito ocupados com a festa. Mas nada que ela não pensasse que não poderia ser resultado de uma semana exaustiva de trabalho. E após aquela que foi sua festa mais cara e também a melhor festa de aniversário, veio aquela que seria sua maior decepção com a humanidade. No dia seguinte aos bolos, presentes e doces, sua mãe chamou-lhe no seu quarto e anunciou que "papai e mamãe não podem mais viver juntos" e que "papai gostava de outra mulher e que mamãe não confiava mais em papai". Poucas coisas são piores que ir da alegria extrema para o vale da depressão, Jéssica não só chorou de tristeza, mas chorou de raiva, raiva de si mesma.

Seu pai nem sequer fez questão de lutar pela sua guarda. Simplesmente foi embora, sem jamais olhar para trás. Nada de visitas pontuais ou de guarda compartilhada. Esquecimento. Só. Com uma mãe infeliz, afundada em medicamentos antidepressivos e focada no trabalho, Jéssica teve a adolescência livre de amarras e rédeas. Começou a beber aos 13, fumou seu primeiro cigarro de maconha aos 14, ano que coincidiu com seu primeiro namorado e a perda da virgindade. Envolveu-se tanto com rapazes bons como com ruins, embora os últimos fossem seus favoritos, talvez punindo suas "daddy issues". E foi quando revelou a mãe que sabia da traição do pai desde os sete anos, numa das muitas discussões que tivera com ela devido a más notas na escola e mau comportamento, que decidiu sair de casa. Na verdade, foi posta para fora aos 18 anos, após ter repetido o segundo ano um par de vezes. 

E ali foi a ocasião ideal para dar finalmente vazão ao seu Chamado. Começou como dançarina de pole dance no mesmo ano, arte que aprendeu com uma amiga que fez nas muitas "matadas de aulas" ao longo de sua estadia no ensino médio. E quando chegou aos 22 anos já era uma stripper numa casa noturna. Ainda não chegara ao vale profundo e escuro da prostituição, mas era o passo lógico se não fosse por um certo segurança de boate. Explico: Nesse meio tempo, envolveu-se com Gustavo, um rapaz drogado que era segurança da boate. Parecia ser atencioso apesar de tudo, mas numa noite de inverno após muitas carreiras de cocaína, decidiu fazer Jéssica de saco de pancadas, e foi de socos a pontapés, que deixou Jéssica desacordada. Após cair em si, Gustavo roubou o dinheiro do pagamento de Jéssica e fugiu. Jéssica passou ainda uma semana digerindo a surra, até os hematomas sumirem junto com as dores, e foi quando recebeu uma mensagem de sua amiga se compadecendo dela - pois como se sabe, no submundo dos bares e boates adultos, todos se conhecem e as informações correm rápido - , amiga esta que era a mesma que lhe ensinara a dançar no pole. A mensagem dizia de que ela havia se mudado para uma cidadezinha no interior a poucos dias, e que estava pensando em recomeçar sua vida por lá. Arroio do Padre era o lugar, ficava próximo a Arroio Grande, na serra gaúcha. Ali lhe brotou a ideia de que talvez precisasse recomeçar, e que sua amiga poderia lhe ajudar. Então, ligou seu carro - um simpático Ford Ka - e caiu na estrada rumo ao interior.

E chegamos então, enfim, a manhã como todas as outras ou quase, em que na expectativa de recomeçar sua vida num lugar melhor, Jéssica enfrenta o frio atroz do inverno e das altitudes do Rio Grande do Sul rumo a uma cidade que não conhecia. Como a viagem era longa, decidiu se hospedar num hotel numa cidade menor no meio do caminho, uma cidadezinha estranha, sempre envolta de neblina, com aproximadamente 800 habitantes, cidade esta que foi o maior erro de sua vida. Crescente, RS.

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