Nova Iorque, 11 de Dezembro de 2024
Aline caminhava lentamente pelo corredor, o som dos passos ecoando nas paredes do apartamento silencioso. A exaustão se acumulava em seu corpo, cada músculo clamando por descanso, mas sua mente ainda estava desperta, cheia das ideias e teorias que tinha absorvido durante o dia na University of Yale. Ao entrar no quarto, deixou-se cair na cama, o colchão afundando sob seu peso enquanto ela fechava os olhos, tentando afastar o turbilhão de pensamentos.
Sua mente vagou para a primeira aula da disciplina optativa que havia decidido cursar, mais por curiosidade do que por necessidade. Literatura sempre a intrigara, não pelas histórias em si, mas pela forma como as palavras podiam capturar o espírito de uma época, de um povo, e como isso se conectava tão profundamente com as estruturas políticas e sociais.
Ela se lembrou do momento em que entrou na sala, o ar carregado de expectativa. Escolhera um lugar ao fundo, perto da janela, e logo notou o rapaz que se sentara ao seu lado. Ele parecia deslocado entre os outros alunos, talvez pelo jeito clássico de sua aparência: pele clara, cabelos loiros, e um queixo firme que dava ao rosto uma aura de confiança.
O professor, Arnold Archbold, entrou na sala com ares de autoridade, mas havia um brilho nos olhos que revelava seu amor pela matéria que ensinava. Após as apresentações, ele começou a aula de uma forma inesperada, escrevendo uma estrofe no quadro:
O professor se virou para a turma, com um sorriso que misturava curiosidade e desafio.
— Quem escreveu essa poesia? — perguntou ele, os olhos varrendo a sala em busca de uma resposta.
Imediatamente, uma garota de óculos na primeira fileira arriscou: Baudelaire. Um rapaz de cabelo azul, sentado do outro lado, tentou Fitzgerald. O professor riu, sacudindo a cabeça em negação.
— Não, não. Esta estrofe é de uma música chamada "Beautiful", da banda Marillion, lançada em 1999 — ele revelou, sua voz carregada de entusiasmo. — Vejam, uma bela poesia não precisa necessariamente vir dos autores clássicos. Às vezes, está nas letras das músicas que ouvimos no rádio, no cotidiano.
— E sobre o que vocês acham que é essa metáfora? — Archbold perguntou.
O rapaz ao lado de Aline levantou a mão com confiança.
— Jeremy Johnson, professor. Pode me chamar de J.J. — ele disse, um leve sorriso no rosto. — Eu acho que a metáfora é sobre árvores.
O professor arqueou uma sobrancelha, desapontado.
— Bem, isso é... evidente. Mas se fosse realmente sobre árvores, não seria uma metáfora, certo?
Aline sentiu uma súbita urgência de falar. Levantou a mão e, quando o professor a chamou, ela respondeu com firmeza.
— Eu acho que é sobre o tempo. Sobre como ele transforma tudo, leva tudo embora, como as folhas que caem das árvores.
O professor aplaudiu, claramente impressionado.
— Exatamente! O tempo... O grande escultor, o grande destruidor. E você é...?
— Aline Ribeiro, estudante de Economia. Estou cursando esta disciplina porque acredito que entender a literatura de um povo é fundamental para compreender seu espírito e, por conseguinte, suas instituições. Não quero ser apenas uma cabeça de planilha alienada.
O professor sorriu ainda mais, visivelmente satisfeito.
— Bravo, senhorita Ribeiro. Mais economistas deveriam pensar como você.
Subiu ao quarto no segundo andar, com um gesto automático, ligou o termostato, buscando algum conforto no calor que começava a emanar do aparelho. Seus olhos vagaram até a janela, onde a neve se acumulava no parapeito, criando um cenário de branco puro, quase irreal. Nova Iorque, lá fora, estava congelada, mergulhada em um silêncio pesado, quebrado apenas pelo som distante de um carro que passava, solitário, nas ruas desertas.
Aline se sentou na cama, o copo de café entre as mãos, a cerâmica quente aquecendo seus dedos. Ela olhou para a escuridão além da janela, perdida em seus pensamentos, quando um som distante capturou sua atenção. Era a voz de Junior, vindo do quarto ao lado. Ele falava com alguém ao telefone, sua voz baixa, mas clara o suficiente para que Aline pudesse distinguir as palavras.
— Maryna? — Junior disse, rindo suavemente, como se estivesse relembrando algo doce e nostálgico. — Sim, claro que me lembro... você sempre foi especial.
Aquelas palavras, tão leves e despreocupadas, acertaram Aline como uma faca invisível. Seu coração apertou no peito, o desconforto crescendo a cada segundo que passava. Ela tentou se concentrar em outra coisa, qualquer coisa que a afastasse daquele momento. Puxou um livro da mesa de cabeceira, “The Catch”, do premiado escritor inglês Arthur Brooklet, e começou a folhear as páginas, mas as palavras escapavam dela, se transformando em manchas indistintas de tinta.
Os risos de Junior continuaram, ecoando pelo corredor como uma lembrança cruel. Aline fechou os olhos, tentando bloquear o som, mas ele persistia, invadindo seus pensamentos, envenenando sua mente com dúvidas e inseguranças.
“Estou perdendo ele”, pensou, a tristeza a envolvendo como um manto pesado. “Por minha própria teimosia, estou deixando-o escapar. Esperando por um príncipe encantado que nunca vai chegar... sou uma tola.”
Aline sentiu as lágrimas se formando, queimando em seus olhos. Ela colocou o livro de lado, se levantou e fechou a porta do quarto, como se isso pudesse afastar a dor que sentia. Caminhou até o som, ligou o velho toca-discos e deixou que a agulha encontrasse o vinil, iniciando as primeiras notas de “Somewhere Only We Know” do Keane. A música encheu o espaço, sua melodia triste ressoando com a tempestade dentro dela.
I'm getting old and I need someone to rely on,
So tell me when you're gonna let me in
I'm getting tired and I need somewhere to begin
Ela se deitou na cama, encolhendo-se em posição fetal, enquanto as lágrimas começavam a cair amargas e silenciosas. A música a envolvia, criando um casulo onde ela podia se permitir sentir, onde a tristeza podia finalmente encontrar vazão.
No quarto ao lado, Junior ainda conversava, mas agora sua voz estava mais suave, mais distante.
— Estou feliz que tenhamos terminado como bons amigos, Maryna... — ele dizia, e Aline, mergulhada na música, não ouviu. — E espero que você siga seu caminho com tanta felicidade quanto desejo que eu siga o meu... com Aline.
A despedida foi breve, as últimas palavras de Junior envoltas em um suspiro de alívio. Ele desligou o telefone e, por um momento, ficou em silêncio, seus pensamentos voltando a Aline. Ele se levantou da cama e caminhou pelo corredor até a porta do quarto dela, notando que estava fechada.
Gentilmente, ele girou a maçaneta e entrou, apenas o suficiente para espiar. A luz suave do abajur lançava sombras no quarto, e ele a viu deitada de costas para a porta, encolhida na cama. A música preenchia o espaço, abafando qualquer som, mas Junior sorriu ao pensar que ela estava dormindo, exausta após mais um dia de estudos.
Ele apagou a luz, com um gesto suave e cuidadoso, e fechou a porta, deixando Aline na escuridão, sem perceber a tristeza que a consumia. Do lado de fora, o vento continuava a soprar, levantando a neve que dançava como espectros na noite fria de Nova Iorque.
Nenhum comentário:
Postar um comentário