Descendo as escadas, o contraste entre o mundo lá fora e o aconchego do interior da casa era evidente. Aline sentiu-se transportada de volta ao Brasil por um breve momento, o aroma inconfundível do pão de queijo a envolvendo em uma saudade doce-amarga. Havia algo de reconfortante na simplicidade daquele gesto de Junior, um gesto que dizia mais do que mil palavras.
Ela lamentou silenciosamente por ele, por não terem tido a chance de comemorar a vitória no TUFA como deveriam. A vida, como sempre, continuava a empurrá-los para a frente, sem dar espaço para respirar ou refletir. Mas naquele momento, Aline decidiu se permitir uma pausa, um momento para brincar, para se conectar com Junior da maneira mais pura possível.
Com seu pijama rosa com bolinhas, ela se aproximou sorrateiramente da sala de estar, onde Junior estava ocupado entre a cozinha e a televisão. Em uma tentativa de surpreendê-lo, Aline ficou na ponta dos pés e cobriu os olhos dele com as mãos, seus dedos pequenos e quentes contrastando com a rigidez das manhãs de inverno.
Junior sorriu antes mesmo de se virar, sentindo o toque suave e o aroma familiar da loção de Aline. Em um movimento rápido e hábil, ele se virou, pegando-a de surpresa, levantando-a do chão em um gesto que falava de intimidade e brincadeira. Aline soltou uma risada surpresa, mas foi interrompida quando Junior a puxou para um beijo, seus lábios se encontrando em um momento de pura conexão.
— Eu amo quando você tenta me surpreender, mesmo sabendo que não vai conseguir — disse Junior, com um sorriso travesso nos lábios.
Aline riu, um brilho malicioso nos olhos.
— E eu amo tentar, só para ter a desculpa de ser pega no colo.
Eles se sentaram à mesa, compartilhando o café da manhã enquanto conversavam, as palavras fluindo com a facilidade de quem se conhece profundamente. Mas então, a TV que antes apenas murmurava em segundo plano, cortou o ar com um tom urgente. O noticiário começou a relatar que o presidente havia sido chamado às pressas para uma base militar em Washington, D.C., localizada em um local obscuro que ninguém conhecia, na Rhode Island Avenue, em Eckington.
A voz do jornalista era tensa, cheia de uma seriedade que não combinava com o cenário doméstico que Aline e Junior haviam criado naquela manhã. A câmera do noticiário focou em um púlpito da Casa Branca, mas o que realmente chamou a atenção deles foi o logo que apareceu no painel atrás do apresentador: um globo terrestre com o acrônimo XBI e a expressão latina "Defendat omnes homines et orbi."
— O DIX — murmurou Junior, a voz carregada de tensão.
Aline ficou em silêncio, uma sensação de inquietação crescendo em seu peito. Ela conhecia aquele símbolo, e sabia que aquilo não pressagiava nada de bom.
A câmera mudou de foco, mostrando um homem de terno, careca, com feições latinas e pequenos folículos capilares ruivos, que sugeriam um cabelo outrora vibrante. Ele se posicionou orgulhoso, com queixo erguido, ao lado do púlpito, à espera do presidente, enquanto flashes de máquinas fotográficas iluminavam a cena com uma intensidade quase frenética.
Algo estava prestes a acontecer, algo grande, mas antes que pudessem descobrir o que era, o telefone de Aline vibrou em cima da mesa, cortando a tensão que começava a se acumular no ar. Ela olhou para o visor e viu o nome de Rebecca piscando. Aline atendeu, e a voz do outro lado estava carregada de urgência.
— Aline, preciso de ajuda. É urgente. Estou em Coney Island, Brooklyn — disse Rebecca, a voz trêmula, quase engasgada.
Aline sentiu um arrepio percorrer sua espinha enquanto ouvia a voz de Rebecca pelo telefone, carregada de uma urgência quase palpável. Algo sobre a maneira como ela falava indicava que as coisas estavam rapidamente fugindo do controle. Rebecca mencionou a necessidade de conhecer algumas pessoas, alertando que a opinião pública sobre os acontecimentos na Baía de Jersey estava se tornando cada vez mais tóxica, inclinando-se perigosamente para a intolerância.
— Estamos a caminho — respondeu Aline, a voz firme, mas o coração acelerado. Ela olhou para Junior, que já estava de pé, com uma expressão séria. Não houve necessidade de mais palavras; eles estavam sincronizados, movidos por uma compreensão mútua de que o que quer que estivesse esperando por eles em NYC Beach não podia ser ignorado.
Junior se arrumou rapidamente, de forma quase automática, enquanto Aline vestia um casaco pesado, preparando-se para enfrentar o frio que os aguardava lá fora. O noticiário na TV ainda mostrava o local em Eckington, o presidente prestes a iniciar seu pronunciamento. Mas não havia tempo para esperar. As palavras do líder da nação teriam que ficar para depois.
Aline e Junior deixaram a casa em Southgate Boulevard com a urgência de quem sabe que o tempo está contra eles. O frio lá fora parecia mais penetrante, a neve rangendo sob suas botas enquanto atravessavam o caminho até o carro. O silêncio entre eles era pesado, carregado de expectativas não ditas, mas Aline sentia a presença de Junior como um ancoradouro, uma força que a mantinha focada.
A viagem para Conney Island foi tensa, o trânsito da cidade grande uma vez mais caótico. Aline observava as ruas cobertas de neve pela janela, o horizonte da cidade um borrão branco e cinza.
- Não entendo o que leva alguém a morar em Conney Island no inverno. - Protesta Junior.
- As pessoas não trocam de casa só por causa da estação do ano, Junior. - Retruca Aline.
- Sim, mas é deprimente. Se pelo menos as pessoas viajassem para a Flórida no inverno. - Diz Junior enquanto olha um taxi amarelo buzinando na sua traseira.
- Querido, aqui é Nova Iorque. É bem mais frio que Serra do Lago, que já não é um modelo de tropicalidade. Praia aqui é sempre deprimente. - Aline o consola.
Mesmo àquela hora da manhã, NYC Beach estava deserta, uma calmaria inquietante pairando sobre a paisagem. A neve acumulada na areia criava um contraste quase surreal, a vastidão do oceano se estendendo em tons de aço sob o céu nublado.
Quando finalmente chegaram ao local, avistaram a casa de madeira à beira-mar, uma estrutura desgastada pelo tempo, que parecia ter sido usada por pescadores em algum momento distante. A construção, pequena e isolada, parecia estar fora de lugar naquele cenário, como um vestígio esquecido de outra era. Aline sentiu um aperto no peito, um pressentimento que era difícil ignorar.
Eles saíram do carro, o vento gelado mordendo seus rostos enquanto se aproximavam da casa. A neve rangia sob seus pés, abafando qualquer outro som, criando uma sensação de isolamento ainda maior. Aline parou por um momento, olhando para Junior, que caminhava ao seu lado, os olhos fixos na casa à frente.
(Continua...)
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