quarta-feira, 27 de setembro de 2023

RPG, Estética e Recorte Temporal (Parte 4) - Anos 2010

 Olá, amigos! Estamos de volta para falar de uma década complicada. Ela está fresca na memória, mas por isso mesmo é difícil falar dela pois não temos os distanciamento histórico necessário para uma leitura apropriada do fenômeno. Por isso, ambientar um RPG em 2010 possa parecer fácil devido a proximidade temporal, pode ter aí algumas armadilhas importantes. Não serei arrogante de dizer o que você deve usar, mas apenas lembrar algumas coisas do decênio.

Os anos 2010:

No Ocidente e na América Latina, a década de 2000 foi marcada por um grande otimismo devido ao crescimento econômico que se vivenciou durante a década. Esse otimismo sofreu dois grandes abalos, o primeiro dos dois foi o atentado terrorista em Nova Iorque levou abaixo o World Trade Center. A hegemonia americana construída ao fim da Guerra Fria foi posta a prova pela primeira vez. A Guerra ao Terror serviria de fator de união no mundo rico contra o atraso e o reacionarismo islâmico. O resultado foi, além de um grande atoleiro geopolítico em Iraque e Afeganistão, que pautariam as eleições de 2008 nos Estados Unidos, a completa desmoralização do ocidente devido aos inúmeros crimes de guerra, mentiras diplomáticas (quem não se lembra das "armas de destruição em massa" no Iraque?) e a total desestabilização do mundo árabe, o que levaria na década seguinte à famosa Primavera Árabe.

Do outro lado, no campo econômico, tivemos dois grandes choques: A primeira foi a crise de 2008, a segunda foi o reflexo desta na Europa, a crise da zona do Euro (2012). Na América Latina, e no Brasil em especial, tivemos o fim do super-ciclo de comoditties e as crises que se estabeleceram no continente a partir de 2013. Esses dois choques, um no final da década e o outro em seu nascedouro levariam a um enorme pessimismo (ou seria realismo?) sobre o mundo. Isso pôde ser visto em grande parte na mudança das paletas de cores no cinema, o retorno de certo anticapitalismo, e uma visão entediada de um futuro que agora era presente. Falaremos da moda hipster, as e-girls e do minimalismo estético.

O minimalismo estético:

Por alguma razão que me escapa, as empresas de tecnologia chegaram a conclusão que o ambiente otimista, colorido e meio natureba do frutiger aero não comportava mais as necessidades de identidades visuais dos principais instrumentos de tecnologia. Se os computadores foram as estrelas dos anos 2000, os 2010 foram os anos de ascensão dos celulares smartphones, que são literalmente computadores portáteis que fazem ligações telefônicas. É curioso como o mundo mudou a tal ponto que as pessoas usam os celulares para muito mais fins distintos de ligação do que ligação em si. Mandam-se emails, mensagens de whatsapp, fotos, gravações e edições de vídeo, acessa-se o facebook, o instagram e o twitter pela telinha de celular várias vezes ao longo do dia, e em algumas semanas pode-se passar dias seguidos sem fazer ou receber qualquer ligação. Para essa nova realidade, as telas dos celulares cresceram. Sumiram os botões e apareceram os touchpads digitais, e precisou-se simplificar a interface, padronizar. Num ícone 3D você tem três vetores de espaço que permitem a composição de inúmeras formas diferentes para um mesmo objeto. Num bidimensional, você tem menos possibilidades e, por isso, a padronização e repetição tendem a ser maiores. Essa é minha hipótese pro minimalismo, necessidade de padronização estética e economia de memória.

Antes
Depois



Aí é que surge nos meados de 2013 o design minimalista: formas chatas, bidimensionais, com tonalidades pastel, e formas abstratas cheias de quinas. O Windows e o Android foram os mais visivelmente impactados pela nova organização ideovisual do ponto de vista estético.


Uma vez que se junta isso ao contexto histórico mencionado na abertura desse artigo, percebe-se claramente que se os 2000 versavam sobre o futuro, os 2010 eram o futuro, e havia algo de errado com ele. Ele era menos vivo, menos brilhoso e um pouco aborrecido. O frutiger aero dizia: 

- O futuro será brilhante, transparente, equilibrado. 

O minimalismo diz: 

- O futuro é agora e é entediante.  

O otimismo dos 2000 foi substituído por um certo pessimismo, talvez uma certa decepção com as promessas dos 2000 de um mundo clean e em equilíbrio. No seu lugar vimos a piora das mudanças climáticas e uma sequência de crises econômicas e sanitárias que derrubaram os velhos consensos sobre democracia e liberdade.

O mundo construído por Francis Fukuyama ruiu ou sequer existiu? A História voltou.

Ameaças de guerra, um certo pessimismo distanciado, bucólico e até melancólico passou a ser a tônica de muitos filmes, como por exemplo, The Amazing Spiderman (estrelando Andrew Garfield e Emma Stone), observe a paleta de cores e John Wick (com Keanu Reeves):



No caso da duologia estrelada por Garfield e dirigida por Marc Webb, a coisa é até gritante, especialmente se compararmos com a trilogia do Sam Raimi, super colorida. No caso de John Wick vimos a recuperação da estética noir que parecia a muito aposentada desde "Matrix Revolutions". Nem mesmo a trilogia do Batman do Nolan foi tão sombria, em muito se afastando das temáticas góticas de obras anteriores e dando uma forte camada de verossimilhança ao homem-morcego. 

Uau! Cores!

Algumas pessoas preferem dizer que os 2010 foram uma época de realismo motivado pelo desencanto com as promessas do 2000. Talvez tenham razão. Seja como for, o otimismo deu lugar ou a um realismo ou a um certo pessimismo melancólico. No fim da década, isso resultaria numa forma colorida de negação da realidade, muito endossada pelo que os conservadores chamam de "cultura woke". Mas falaremos disso no final.

Os Hipsters e as e-girls:

Ainda bem que essa bosta passou...
A subcultura e a estética hipster sempre me despertou certa curiosidade. Porque a princípio ela me parece uma variação do vintage, engendrando em si própria uma série de elementos anacrônicos e inconsistentes. Pense num hipster: pensou num cara magricela de barba estilizada, camisa xadrez de flanela, colete, chapéu côco bowler e um óculos quadrado verde? Eu também. Um dos símbolos mais fortes do hipster é que ele sempre procura – como bom filho da cultura vintage – o anacronismo como forma de mudar seus hábitos e vestimentas. Procura-se o uso de palavras mais antigas, mistura-se elementos contemporâneos como tatuagens com penteados, roupas e óculos da década de 20, 30 ou até 40. Tudo isso de forma contrastante como um sinal de continuidade entre passado e futuro, como  alguém sempre no presente ou alguém atemporal. François Hartog, um filósofo pós-moderno da história chama a atenção para isso, como notam os também historiadores Júlio Bentivoglio e Patrícia Merlo (2014, p.23):
“Essa apropriação do passado pelo presente constitui aquilo que Hartog denominou presentismo. O revival, o vintage, o uso de estilos estéticos, linguagens e objetos do passado no presente são marcas desse presentismo e de crise desse regime moderno de história e historicidade”.
Mas de que crise falam os professores da UFES ao se referir a François Hartog? Apelando ao crítico literário Hans Ulrich Gumbrecht (apud Merlo e Bentivoglio, 2014, p.24), ambos relacionam essa crise com o medo do futuro, pois conforme o próprio Hartog concordaria “o futuro reserva mais ameaças que exatamente promessas de felicidade e progresso”. Assim sendo, a impressão que eu tenho é que esse pessimismo foi a tônica da época. Do outro lado, vimos a emergência de uma filha mais depravada e carente de atenção da subcultura emo: As e-girls. 

Essas proles dos anos 2010 acabaram sendo relacionadas ao tipo mais tóxico de mulher para se relacionar com o tempo, um bom exemplo é o filme "Scott Pilgrim contra o mundo" onde o protagonista tem que passar por cima de catada ex-namorado-metafórico de Ramona Flowers (uma e-girl com certa tendência a promiscuidade) para conquistar a donzela encantada. (Em que pese achar extremamente curioso essa contradição de uma abordagem tão progressista para uma personagem se valer de um enredo tão pobre e conservador. Mas enfim...) As e-girls são um grupo de pessoas, geralmente mulheres, que se expressam através da internet, especialmente nas redes sociais. Elas são conhecidas por seu estilo de moda e maquiagem distintos, que muitas vezes incluem cabelos coloridos, roupas inspiradas em animes e jogos, além de maquiagem pesada e estilos de sobrancelha únicos. As e-girls também podem ser associadas a certos comportamentos online, como ser attention whore e ter uma série de daddy issues. Seja como for as e-girls viraram alvo da fúria de grupos masculinistas e da machosfera por serem a a imagem modelo da causa de todos os seus problemas (oi?). Ou seja, aquele pessimismo choroso das emos sobre relacionamento acabou dando lugar a um tipo de fetiche sexual sadomasoquista ou algo assim.

Belle Delphine é um caso clássico. De influenciadora e menina gamer a atriz pornô foi um pulo.

O colorido: a alegria postiça como negação e o fenômeno Marvel:

O que nasceu com filmes bem realistas em geral, como os do Capitão América (O primeiro Vingador) e o Homem de Ferro de 2008, acabou se convertendo no final de 2019 numa batalha cósmica com heróis de uniformes coloridos, laseres e efeitos especiais brilhantes e fosforescentes contra um alien roxo e tudo isso com um guaxinim e uma árvore falante no meio. Não tem como falar da década de 2010 sem falar da ascensão do maior Império da cultura nerd já criada em muito tempo: O MCU. Pari passu com isso vimos Coldplay sair da banda melancólica dos anos 2000 e se tornar um protótipo de música baladinha de "boy magia" de floripa: Uma coisa medonha! 

O fato é que toda a melancolia suave e pessi-realismo dos anos 2010 acabaram enchendo o saco e com tanta coisa acontecendo no xadrez geopolítico, e uma pandemia, e uma década perdida, e mais crise econômica, e reestruturação de economias que resistiram a sair dos marcos do neoliberalismo só poderia dar numa onda de negação (seja da realidade ou da política). Bastava-se votar num novo "anjo vingador" outsider (Bolso-Trump) que vai resolver todos os nossos problemas e ir pro cinema comprar pipoca no copo do Homem de Ferro ver mais um filminho de herói cheio de bonequinhos de CG. E, no fim de semana, ir pra baladinha ouvir mais uma música colorida do Coldplay. 
Quem são vocês e o que vocês fizeram com a banda que compôs Fix You?

Não é por outra razão que Alan Moore chamou a atenção de que super-herói estava virando coisa de facho. A própria esquerda em grande medida aderiu ao fim e ao cabo a lógica de marvelização da política, tratando seus rivais de extrema-direita como vilões de livro e filme adolescente, O #EleNão bebeu na fonte de Harry Potter, que transformou Voldemort numa entidade cujo nome "não deve ser falado". Por fim, a eleição de 2020 nos EUA, e 22 no Brasil viraram uma luta do bem contra o mal, que se por um lado até faz algum sentido, visto que de um lado havia um genocida. Não passa de mais uma idealização bocó da realidade baseada numa novelização (ou marvelização) da política na qual deve-se necessariamente encontrar vilões e mocinhos, sem que haja qualquer degradê em tons de cinza. Haja saco! Não é de se estranhar que de todo esses espetáculo a negação da esfericidade da terra, das vacinas e das urnas eletrônicas tenha se desenvolvido como uma força política, afinal, começou tudo como uma negação da realidade de gente que se recusava a aceitar o realismo minimalista dos 2010.

Esse pode ser um bom espírito para sua mesa de RPG, caso você queira fazer sua aventura tipo, no mesmo ano de um certo jogo de semifinal de Copa do Mundo em 2014 no Brasil. Se será realista ou pessimista é com você!

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