Oi, voltei.
Minha mãe é uma mulher religiosa. Devota mesmo, dessas que veem a mão de Deus em cada esquina, e que educam os filhos com a Bíblia numa mão e a oração da manhã na outra. Mas minha mãe também sonhava alto — um sonho meio divino, meio burguês. E por causa disso, eu fui uma criança pobre crescendo entre ricos, ainda que só aos domingos.
Nossa igreja não era da quebrada. Era um daqueles espaços modernos clean, com luz fria, telão, café na entrada e música worship tocando em volume alto — onde os pastores falam como executivos e os filhos dos fiéis estudam em colégios com mensalidades de quatro dígitos. Eu ia de chinelo, com camisas que imitavam — mal e porcamente — as dos meus colegas. Tênis falsificados, quase-All Stars, quase-Nikes.
Minha mãe acreditava que esse convívio me faria bem. Que eu aprenderia a ser “uma pessoa educada”, dessas que falam baixo, leem filósofos e ouvem músicas elevadas. Então ela deu um jeito de me pôr em aula de piano (não sei como pagava), dizia pra eu estudar Platão antes de dormir, e me presenteava com CDs de hinos americanos tocados ao violino, enquanto meus colegas ricos ou ouviam rock, ou escondiam seus próprios vícios musicais em fones caros.
Eu, no fundo, nunca gostei de funk — mas gostaria de ter podido me esconder mais com os funkeiros da escola. Sentar com eles, rir com eles, fazer parte daquele mundo livre de culpa. Ao invés disso, eu ouvia rock escondido, trancado no quarto, com o volume baixo. Minha mãe acreditava que os ouvidos eram portas espirituais — e que o rock era um veneno diabólico disfarçado de guitarra. Cada acorde era uma infração secreta.
Na escola pública, eu era o esquisito. Filho da crente, o que fala difícil, o que não joga bola, o que cita Nietzsche na redação. Um alvo fácil. Mas também não pertencia aos filhos da elite gospel da igreja. Eles sabiam sorrir no tom certo, tinham planos de intercâmbio, sabiam nomear as universidades “de Deus” que frequentariam. Carregavam um senso de pertencimento que vinha da certeza de que estavam no caminho certo. Eu era só um figurante.
Minha criação produziu um paradoxo: educado demais pros meus, pobre demais pros outros. Virei um bicho híbrido, sem manada. E foi nesse entre-lugar que comecei a criar mundos onde eu pudesse existir de verdade.
Foi assim que nasceram "As Crônicas de Serra do Lago". A cidade fictícia, com suas famílias tradicionais, suas liturgias decadentes, seus códigos de honra, nasceu da mistura de raiva e fascínio que eu sentia por esse mundo que me rejeitava e, ao mesmo tempo, me atraía.
A crítica que faço ali — às elites religiosas, aos valores que fingem moralidade enquanto escondem privilégio — vem da minha experiência como infiltrado. Eu era o garoto da classe D que sabia quem era Tchaikovsky, que lia Shakespeare no recreio e fazia piada com a liturgia. Eu queria ser como eles, mas também queria desmascará-los.
Personagens como Daniele — boas apesar do sistema — talvez representem a esperança de que existe algo de humano ali. Mas é na crítica, na sátira e na criação que eu sobrevivo. Que eu me vingo.
E talvez aqui caiba uma menção honesta à minha primeira namorada — uma garota gótica, alternativa, livre, que minha mãe odiava sem nunca tê-la conhecido. Ela era, pra minha mãe, a prova viva da “degeneração do mundo”: tinha 19 anos e não era virgem. Era tudo o que uma mulher não podia ser no vocabulário da igreja. E, por isso mesmo, era tudo o que me fascinava. Eu namorei escondido, tremendo de medo, mas também com um gosto de liberdade que nunca mais senti do mesmo jeito. Minha mãe queria que eu me casasse virgem com uma virgem da igreja. Eu só queria poder amar alguém sem me esconder.
Talvez eu tenha errado muito na vida — e pago o preço. Talvez eu esteja errado sobre tudo. Sobre o que penso, sobre o que vivi. Talvez eu seja injusto até com as classes mais pobres, que, no fundo, quase nunca têm o apoio de ninguém — muito menos do Estado. O que escrevo pode soar como faniquito de menino rico, ainda que rico eu nunca tenha sido. Talvez muitos gostariam de ter tido alguém que os impedisse de cair em certos buracos da vida. Mas aí vem a pergunta: que virtude há em agir certo se o erro não é uma opção? Obedecer por medo não é virtude. É só programação. Tal como robô.
Hoje, tento experimentar pequenas liberdades — pelo menos aquelas das quais não tenho tanto medo. Pois o medo ainda é uma constante. E mesmo fora da casa dos meus pais, não posso me permitir certos luxos que talvez uma adolescente normal pudesse ter. O que mais dói é saber que certas experiências têm seu tempo — e quando ele passa, elas não voltam. Sei disso porque dei esse conselho a uma pessoa que sofreu do mesmo mal que eu: mais jovem, tentando viver aos 30 o que não viveu aos 19. Tentando curtir, dançar, beber, transgredir… mas sozinha, ou mal acompanhada, as experiências vêm com gosto amargo, de atraso. E eu disse a ela o que hoje também sirvo de lembrete pra mim: às vezes, a gente precisa aceitar que certos momentos não voltam. Se isso é injusto, é porque o mundo é injusto. E aceitar isso não é resignação de covarde — é inteligência de general que não desperdiça soldados numa guerra perdida. Só temos uma vida. Temos que vivê-la bem.
E entre todas as consequências da minha criação, talvez a mais silenciosa e devastadora seja essa: a solidão. Fui um adolescente com pouquíssimos amigos. Um jovem adulto ainda mais isolado. E hoje, já casado, sou um adulto sem amigos. Os únicos vínculos reais que mantenho são online — pessoas queridas, mas distantes, que talvez eu nunca veja pessoalmente. E isso não é culpa da tecnologia, nem do tempo. É o resultado de ter sido criado num mundo onde o diferente era perigoso, o mundano era imundo, e a amizade era restrita a quem repetia os mesmos versículos. Cresci aprendendo que confiar em gente de fora era abrir brecha para o diabo entrar. E esse medo social, essa barreira invisível entre mim e o mundo, me acompanha até hoje — como um vidro grosso que me separa das festas, dos vínculos espontâneos, dos grupos que se formam sem esforço. Eu vejo tudo isso de fora. Ainda hoje.
Assim como essa pessoa que aconselhei, eu não aprendi a gostar de baladas. Não aprendi a beber — embora hoje eu já me adapte como bebedor social. Não aprendi a fumar, embora a curiosidade exista. Mas imagino que, se aprendesse agora, pagaria o preço com os pulmões de um velho com enfisema. Não sei curtir shows, me sinto deslocado. Me sinto oprimido em meio a aglomerações. E não, eu não sou autista — e talvez nem mesmo introvertido. Se sou, fui feito assim. Fui condicionado.
Roger Scruton dizia que há duas formas de viver: proteger o que se ama ou destruir o que se odeia — e que a primeira é superior. Mas só pode amar esse mundo quem foi amado por ele. Eu não fui. Tudo que amei me foi censurado. Me foi arrancado. Então não, eu não tenho por que amar esse mundo.
O catolicismo, com todos os seus horrores históricos, ao menos me mostrou uma fresta de humanidade. Foi através da fé aberta e branda da minha esposa católica que eu descobri um outro modo de religiosidade — um que não me amaldiçoava por existir.